Na Chincha

Patrícia me chamou na chincha esse final de semana. Me pediu que eu tivesse uma postura um pouco mais condizente com a minha pouca idade e uma atitude que seja menos daquilo que eu chamo de… eu.

Patrícia me cobrou um pouco mais de responsabilidade, um pouco mais de postura de marido, de chefe de casa, de marido de forno e fogão, um pouco mais de organização, uma agenda que diga quando, onde e porque, um pouco mais de descanso e horas livres entre um dia de trabalho e outro e uma porção generosa de menos trabalho durante os finais de semana.

Como se ainda não fosse suficiente, Patricia me pediu que eu cuidasse mais de mim, que vivesse mais, que aumentasse a minha pouca expectativa de vida e de viver. Me pediu filhos, netos e bisnetos, uma linhagem inteira de descendentes da loucura e de catarse que me acomete dia sim, dia também, e um pouco mais de ócio criativo, responsabilidade com meu ludismo e comprometimento com minhas resoluções de ano e vida nova.

Apertando a Chincha. Gravura de Edmundo Castilhos.

Apertando a Chincha. Gravura de Edmundo Castilhos.

Me pediu que fizesse a barba e que trocasse o jogo de toalhas que ganhamos de presente. Me pediu comedimento e temperança nas despesas, me pediu menos custos e mais investimentos, principalmente naquilo que não tem cifrões. Pediu que fizesse mais cafés da manhã, mais torradas, sucos de laranja, frutas picadas, mel e aveia, leite quente, rosquinhas da quitanda e biscoitos de polvilho, tempo na mesa e televisão desligada.

Me pediu que passasse fio dental nos dentes uma vez ao dia e que escovasse os dentes após as refeições. Me pediu que eu fizesse horário de almoço. Me pediu que respirasse fundo, mas que nunca desistisse. Que anotasse as coisas por fazer em algum lugar. Que fizesse alguma coisa da vida, qualquer coisa, mas que fizesse alguma coisa. Me pediu pra cuidar de mim, pra ir ao médico e ao dentista pelo menos uma vez por ano. Me pediu exames de sangue, hemograma, glicemia e plaquetas. Me pediu que fosse ao dermatologista, ao nutricionista, fisioterapeuta, nutrólogo e ao astrólogo.

Me pediu compromisso com os compromissos que assumi, e pelo amor de Deus, me pediu para que não me comprometesse tanto com os outros. Me pediu que escutasse mais minha mãe, ouvisse mais o meu pai, que tivesse mais compaixão pelos meus irmãos.

Não satisfeita, me pediu que eu deixasse de ser eu e voltasse a ser TUDO.

A Necessidade.

A necessidade de tentar retomar a propriedade sobre a minha própria vida me fez escrever este blog. Embora seja minha a minha vida, sinto que ela me pertence cada dia menos.

Claro que isso não é culpa da minha família, do meu trabalho, do meu chefe ou dos meus amigos. A culpa é minha mesmo. E eu reconheço isso. Mas ao mesmo tempo em que reconheço e admito a minha culpa, também reconheço que não sei mais como me desvencilhar, e me desamarrar, da minha família, do meu trabalho, do meu chefe, dos meus amigos e da minha culpa. E também dessa prisão que eu mesmo construí. Eu queria ter a resposta.

Porque eu sempre coloco a culpa em mim?

Ultimamente a minha vida me parece ser uma coisa totalmente distante de mim. Como se ela não mais me pertencesse. Coloco isso no blog porque quero dividir isso com vocês. Eu sei que eu não sou o único vivendo isso. Mas será mesmo que, em pleno século XXI, 2012, será que tem gente que ainda se pertence? Que ainda é dono de si? Que pensa por conta própria?

Easter Egg: eu sei que isso é um metrô e não um ônibus. Obrigado.

Voltando pra casa do serviço, de ônibus, eu tenho uma dificuldade tão grande em reconhecer pessoas únicas que estão lá dentro comigo. Não consigo colocar na minha cabeça que todas aquelas pessoas têm casa, têm identidade, têm personalidade. De onde saíram todas aquelas gentes? O cara que está sentado do seu lado não saiu de uma gaveta. Ele existe, ele vive, tem família, tem casa, amigos, mora em um bairro. Eu só tenho tanta dificuldade em ver isso. Eu não quero o mal delas, mas de onde foi que todas essas pessoas saíram? Quem são todas essas pessoas que atravessam as faixas de pedestres na Praça Sete?

E se vivem todas aquelas pessoas, se têm vida, por que insistimos em simplesmente existir? Por que eu insisto em existir ao invés de viver? Faço as coisas todas no automático. Escovo os dentes sem perceber, tomo banho olhando pra frente e não pra mim mesmo. Tem meses que não me olho com o olho atento à minha imagem refletida no espelho. Não que eu não me veja, eu só não me percebo. O meu corpo, e por consequente, a minha vida, parece sempre com aquele quarto bagunçado prestes a ser arrumado. A bagunça que precede a ordem.  Aquela bagunça que está sempre esperando pra ser arrumada. Tudo está sempre em andamento, mas nunca pronto. E nunca vai ficar pronto.

Às vezes eu penso em me abandonar, em abandonar minha mente e só deixar o corpo trabalhar. Fico pensando que talvez o melhor seja eu me largar de lado e esquecer tudo isso. Entregar o meu corpo ao meu trabalho, à minha família e me esquecer de mim. Desligar minha mente e me colocar no automático, como tenho feito. Me acostumar com a ideia. Em tornar isso uma escolha. Eu escolhi não viver. Eu escolhi existir. Não sois homens. Sois máquina. Sois porta.

Eu me vendo por muito menos do que você paga.

2013

Belo Horizonte, 27 de março de 2012.

Linda Pattiws,

Até o final do ano, se Deus quiser, as coisas vão melhorar. Você vai ver.

Mas se não for esse ano ainda, quem sabe ano que vem estarei na sua casa enquanto você vai à aula, então poderei lavar suas roupas, fazer faxina na casa e até mesmo o seu jantar. Quem sabe? Quem sabe ano que vem, quando você chegar em casa, você encontre a cama arrumada, o jantar à mesa, a louça do dia anterior lavada e toda a roupa suja dentro da máquina, de molho.

Ano que vem talvez você perceba que a vida pode ser muito mais fácil quando vivida a dois. Tomara. Que a sua maior dificuldade seja abrir os livros para estudar depois de um dia cheio no trabalho, e depois a aula na faculdade.

Pattiws e eu.

Quem sabe ano que vem a vida não seja um pouco mais fácil pra você. Quem sabe no ano que vem compramos um carro e eu te busco todos os dias na faculdade? Você entra no carro, cheia dos seus trecos de faculdade, livro, mochila, fichário. E em meio a tanta coisa, você ainda se lembra de me dar um beijo, mesmo que rápido, que é pra eu não reclamar, e pra não estressar o cara que tá aí no carro de trás.

Quem sabe ano que vem eu não derreto de suor passando suas roupas complicadas de dobrar com o ferro a vapor que você comprou e que os finais de semana virem caixotes, e que caixotes virem armários, como aquele que vimos na revista de decoração que você assinou e que eu adorei.

Quem sabe no ano que vem as noites de quarta sejam de filmes, mesmo que tarde da noite, no colchão inflável que compramos pra assistir filme na sala de tevê. As noites de terça podem ser de uísque, petiscos e leituras do nosso livro de mitologia grega que compramos. Que a sexta a noite sirva pra descansar, dormir.

Quem sabe ano que vem o Rubinho não volta pra Ferrari e as manhãs de domingo sejam de Formula 1, pra mim, e de preguiça, pra você. As manhãs de sábado serão de aulas. As tardes e noites de sábado serão da sua tia Vanessa, e do Bruno, da Beta e do André, da Valéria e do Mário. As tardes de domingo serão aqui em casa. Minha mãe faz questão. Se você gostar da ideia, eu posso fazer outro pudim crioulo que a minha tia me ensinou pra gente levar pro almoço que vai ter lá em casa. Mas você pode sentar aí no banquinho enquanto eu cozinho. Já, já, fica pronto. Senta aí e me serve outra dose de uísque, liga o rádio na nossa estação e me lê aquele poema do Fernando Pessoa, aquele que diz que ele nunca conheceu alguém que tivesse levado porrada. É, Patrícia, aquele que você achou bobinho.

Aí talvez você me dê alguma interpretação viajandona para os poemas dele, e tente me convencer que o Fernando Pessoa não tava falando da profundidade vida, mas sim de alguma coisa muito mais banal e sem graça, como o trabalho pelo trabalho às segundas-feiras. E que talvez assim eu morra de raiva de você – como tenho morrido todas as vezes – por estragar a minha interpretação linda do poema do Alvaro de Campos, como você fez com aquele poema do Drummond, lembra? E talvez assim eu não encontre outra solução que não seja jogar farinha de trigo no seu rosto, que é pra você parar de falar bobagem e parar de estragar os sonhos das pessoas que ainda leem alguma poesia.

Quem sabe a vida não fique mais leve no ano que vem.

A vida ficando mais leve.

CUIDADO POSSÍVEL.

Cuidado Possível é o nome deste novo blog. Cuidado Possível porque eu não consigo mais cuidar de mim, nem da minha vida como eu gostaria. Da mesma forma que sei hoje que não consigo cuidar de mim, também sei que não posso descuidar de mim, ou não cuidar de mim. Quem não cuida de si, não é. Não existe. Por menor que seja o meu cuidado comigo, ainda é um cuidado. O descuido é uma forma de cuidado. Ou uma modulação de cuidado.

Por isso mesmo, Cuidado Possível. O cuidado possível que você tem com você e com as pessoas que o cercam, o cuidado possível que você tem com a sua cidade, com a sua casa, com a sua família, com as pessoas que você ama e com os seus amigos. Tudo dentro do possível. Essa merda de cuidado que eu tenho com todo mundo,  que é quase um não-cuidado, e que eu chamo de “Cuidado Possível”.

Não dá mais pra cuidar de mim, ou de você, como eu gostaria.  O cuidado total, o amor total. Inexiste. Não o é. Não da forma que eu gostaria. Por isso mesmo, Cuidado Possível. A barba feita a cada três ou quatro dias. Escovar os dentes não após cada refeição, mas quando dá tempo. O cuidado possível com a sua mente e com o seu corpo.

Cuidado Possível vai ser onde eu vou desabafar e desabar com vocês sobre tudo isso. As aventuras e desventuras de alguém que tenta ser em um mundo que não é. O dia a dia de uma pessoa que não vive, apenas aguenta.

Aproveite o dia, conhece a ti mesmo... Tatuei na pele pra nunca esquecer. E mesmo assim, a gente acaba se esquecendo...